sábado, 12 de setembro de 2015

Perguntas e Respostas: Estatina e o tecido muscular esquelético - Interface com a Reumatologia


Por Felipe Mendonça de Santana*

Não faltam adjetivos para definir a literatura sobre o acometimento muscular da estatina: vasta, heterogênea, divergente, enfim, confusa. Nomenclaturas várias são encontradas, com nomes iguais para cenários diferentes, e nomes diferentes definindo cenários iguais. Abaixo, seguem alguns ponto-chaves no assunto:

1) Como nomear o acometimento muscular da estatina ?

Optei por iniciar com este tópico, pois ao longo do texto utilizaremos os termos definidos nesta sessão.
A nomenclatura é confusa e ainda pouco sedimentada. Segundo o NLA Task Force on Statin Safety - 2014 update, o termo genérico recomendado seria “Efeito adverso muscular associado à estatina”. Todos os outros termos, incluindo Miopatia por estatina, representariam manifestações específicas da nosologia. Abaixo segue uma tabela do Task Force com as principais definições:


Concordemos que o termo “Efeito adverso muscular associado à estatina” não é nada prático, e dificilmente será reproduzido em um cabeçalho de prontuário, ou mesmo repetidamente em um texto qualquer. Encontramos de forma recorrente na literatura o termo Miopatia por estatina definindo todo o espectro de lesão, o que não é recomendado pelo Task Force.
A partir deste momento, utilizaremos, por motivos práticos e por falta de algo melhor, o termo Miotoxicidade por estatina como sinônimo de “Efeito adverso muscular à estatina”.

2) Quão comum é a miotoxicidade por estatina?

Na prática clínica, é frequente vermos pacientes com queixas musculares e/ou alterações laboratoriais  em enzimas musculares em uso de estatina. Relatos clínicos sugerem incidência entre 10 a 25%. A maior metanálise no assunto, entretanto, mostrou apenas uma tendência estatística no aumento de problemas musculares com estatina em relação ao placebo. Eis, aqui, nova divergência.

3) Qual a fisiopatogenia da lesão muscular?

Inúmeras são as teorias e um mecanismo único não explica todos os quadros clínicos. Mais frequentemente cita-se a redução dos níveis de Coenzima Q10 (ou Ubiquinona), o que comprometeria a produção energética celular. A Coenzima Q10 é uma substância do tipo benzoquinona, presente nas mitocôndrias, que participa na cadeira transportadora de elétrons, sendo fundamental para respiração celular aeróbica. Existem estudos que corroboram a hipótese, e estudos que a refutam. Outro mecanismo possível, porém mais raro, seria o desenvolvimento de auto-imunidade, com necrose de fibras musculares imuno-mediada, cujo gatilho seria a estatina. Na literatura, vários outros mecanismos são citados.

4) Qual a clínica da miotoxicidade por estatina?

Quase sempre o quadro clínico envolve uma combinação variada de dor (mialgia) e/ou fraqueza (miopatia). O acometimento é predominantemente proximal e simétrico, mas quadros atípicos são descritos. Em 2/3 dos casos, os sintomas surgem em até 6 meses do início do uso, porém há relatos de casos iniciados após 4 anos. Elevação da creatinokinase (CK) pode ou não estar presente. Menos comumente a miotoxicidade pode se apresentar com elevação aguda e intensa da CK, com mioglobinúria e/ou lesão renal, definindo um quadro de rabdomiólise.  Esta é um evento raro com o uso da estatina, com incidência menor que 0,5%.

5) Existem pacientes mais susceptíveis à miotoxicidade por estatina?

Sim. Pacientes com doenças neuromusculares prévias, doença renal aguda ou crônica, hipotireoidismo e doença hepática colestática apresentam maior incidência. O uso concomitante de drogas inibidoras do Citocromo CYP3A4 e/ou drogas com potencial intrínseco de miopatia também aumentam o risco. No primeiro grupo, destacam-se a ciclosporina, os macrolídeos, os bloqueadores dos canais de cálcio (particularmente os não-diidropiridínicos), a amiodarona, alguns antifúngicos azoles (p.ex cetoconazol) e inibidores da protease (p.ex ritonavir, indinavir etc). No segundo, temos os glicocorticoides, os fibratos e a colchicina.

6) Existem diferenças, entre as estatinas, quanto ao potencial miotóxico?

Sim. Fluvastatina e pravastatina parecem ser as mais seguras, o que tem sido demonstrando tanto em estudos populacionais como in vitro. O grande contraponto é que ambas são estatinas menos potentes. Caso potência seja um fator limitante e o preço não seja algo que limite seu paciente, deve-se dar preferência a rosuvastatina e a pitavastatina.

7) Em quanto tempo espera-se a resolução do quadro após a suspensão da droga?

                A resolução dos sintomas e da elevação de CK, quando presente, costuma ocorrer em dias a semanas. A média de tempo para a resolução dos sintomas é de 2- 3 meses, sendo que em torno de 90% estarão assintomáticos dentro de 6 meses. Casos que se mantenham sintomáticos além deste período, particularmente quando associados a elevação persistente da CK, devem ser investigados para Miopatia Necrosante Auto-imune induzida pela estatina, que é uma complicação rara caracterizada por um processo necrosante persistente e progressivo, imuno-mediado, cujo gatilho frequentemente é o uso da estatina. Suspeita-se principalmente quando frente a um caso de miotoxicidade persistente após suspensão da droga, e cujo comportamento clínico lembra o de uma Miopatia Inflamatória Idiopática (p.ex Dermatomiosite e Polimiosite). A chave para o diagnóstico é a biópsia muscular (com necrose de fibras, com pouca inflamação) e a presenta de auto-anticorpos específicos (Anti-HMG-CoA redutase). O tratamento, diferentemente dos outros quadros de miotoxicidade, além da suspensão do fármaco, envolve imunossupressão.

Leitura sugerida:

- Jacobson, TA. NLA Task Force on Statin Safety - 2014 update. Journal of Clinical Lipidology (2014) 8, S1–S4
- Rosenson RS, Baker SK. Statin myopathy. In: Uptodate. Jul 10, 2015. Acessado em 12/09/15
- Ganga HV, Slim HB, Thompson PD. A systematic review of statin-induced muscle problems in clinical trials. Am Heart J. 2014 Jul;168(1):6-15

 * Graduado em Medicina pela Universidade Federal de Pernambuco. Médico com residência em Clínica Médica pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Atualmente é residente em Reumatologia pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP)

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