quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

CATE Completo: o que é isso e como ele pode te ajudar na avaliação de doenças valvares cardíacas !

No seguimento do paciente com valvopatia importante eventualmente nos deparamos com situações onde ocorre certa discrepância entre achados clínicos x ecocardiográficos.

Dai surge a dúvida: afinal,  essa doença valvar é ou não é anatomicamente importante ?

Nessa situação, a utilização da cateterização de câmaras cardíacas para aferição de valores de pressóricos, medidas de gradientes entre as câmaras e injeção de constrastes para realização de 'grafias' podem auxiliar no diagnóstico e quantificação de gravidade da doença.

O procedimento é denominado CATE completo, em que se é feito CATE Direito + Esquerdo com cineangiocoronariografia + Ventrículo e Aortografia

São aferidas as pressões em Átrio Direito (AD), Ventrículo Direito (VD), Artéria Pulmonar (PAP), Pressão Capilar Pulmonar ou Pressão de Oclusão da Artéria Pulmonar (PCP ou PAOP), Ventrículo Esquerdo (VE) e Aorta (Ao). Esses valores podem ser obtidos em período de sístole (S) e diástole inicial (D1) ou final (D2).

Além da aferição pressórica, a ventriculografia nos dará noção de competência valvar mitral (excelente para detecção de insuficiência mitral) e de alteração de mobilidade da parede ventricular (podendo apontar para alterações difusas ou segmentares de mobilidade). A Aortografia mostrará se há competência valvar aórtica.

Por fim, quando indicado – seja em investigação de etiologia de dor torácica ou como exame de rotina de pré-operatória valvar – realiza-se a cineangiocoronariografia.

Contudo, carecem de fontes onde se possa realizar uma leitura direcionada para a interpretação das medidas pressóricas realizadas nesse exame e o avaliador, ao deparar-se com o laudo fornecido, pode encontrar alguma dificuldade em extrair dele informações essenciais.

Sendo assim, o objetivo desse post é fornecer alguma padronização para uma análise dos resultados do exame.

A pressão de artéria pulmonar média (PAPm) é considera normal até 20 mmHg e o valor para que seja caracterizada hipertensão pulmonar (HP) fica em torno de 25 mmHg, por convenção.

A pressão do capilar pulmonar (PCP) reflete a pressão em átrio esquerdo e é normal entre 12-15 mmHg.

O valor de PAPm subtraído do valor da PCP é denominado de Gradiente Transpulmonar (GTP).


1º passo: observe qual valor PCP

Se for menor que 15 mmHg, não há aumento de pressões cardíacas esquerdas justificando quadro de dispnéia, uma vez que a pressão de enchimento cardíaco do lado esquerdo está normal.

Se esta for maior que 15 mmHg, deve haver alguma alteração em câmara esquerda (podendo ser valvopatia mitral, aórtica ou mesmo disfunção ventricular) justificando o aumento de pressões ventriculares esquerdas.

2º passo: veja qual o valor da PAPm – Avaliação de Hipertensão Pulmonar e diferenciar padrão pré e pós-capilar

Se for maior que 25 mmHg: está feito diagnóstico de hipertensão pulmonar. Em alguns locais você irá encontrar o termo TP – Tensão Pulmonar, como equivalente a PAP.

Uma vez feito esse diagnóstico é importante que você diferencie se a causa é primária do território de artéria pulmonar, se ela é apenas um reflexo de um aumento das pressões em câmaras esquerdas ( HP secundária a cardiopatia) ou se há acometimento misto.

Para isso, realize a medida do GTP. Valores menores de 12 de GTP em geral apontam para aumento de PAPm secundário ao aumento de capilar pulmonar, ou seja, a PAPm aumentada é só um reflexo do aumento de pressões esquerdas.

Valores maiores de 12 apontam para que exista causa de território pulmonar para HP, podendo estar ou não associada a causa cardíaca, a depender do valor da PCP.

Vamos a alguns exemplos:

CASO 1

Mulher 36 anos portadora de esquistossomose e em investigação de hipertensão pulmonar avaliada de maneira não invasiva por ecocardiograma:

PCP 12 mmHg
PAP 42 mmHg
GTP (PAPm – CP):  30 mmHg

Nessa paciente temos uma PCP normal com PAPm aumentada e um GTP aumentado.

Conclusão:
Hipertensão Pulmonar de padrão pré-capilar.

CASO 2

Homem de 25 anos com história de febre reumática com sopro diastólico em ruflar + estalido de abertura mitral.

PCP 25 mmHg
PAPm 34 mmHg
GTP ( PAPm – PCP): 9 mmHg

Nesse doente temos uma PCP aumentada (‘causa cardíaca para dispnéia’) e o aumento da PAPm deve-se apenas a transmissão do aumento da pressão em câmaras esquerdas, uma vez que o GTP é menor que 12 mmHg.

Conclusão:
Hipertensão Pulmonar de padrão pós-capilar.

CASO 3

Mulher de 34 anos com quadro de estenose mitral de longa data aguardando data para cirurgia.

PCP: 25 mmHg
PAPm: 42 mmHg
GTP (PAPm-PCP): 17 mmHg

Veja que há aumento de CP, demonstrando que há ‘causa cardíaca’ para dispneia, mas uma PAPm de 47 com GTP maior que 12. Nessa situação temos de ficar atentos a duas possibilidades – doença de circulação pulmonar - p.e. se essa paciente tiver feito um TEP com hipertensão pulmonar residual - e a possibilidade de remodelamento da vasculatura pulmonar secundária ao aumento crônico de suas pressões pela doença cardíaca. Portanto, meio que um componente misto de hipertensão pulmonar.

3º passo: Verifique qual a pressão diastólica final do ventrículo esquerdo (PD2 do VE) e compare-a com a CP.

Em situação normal, elas devem ser muito próximas uma da outra pois na fase diastólica final, o ventrículo deve encontrar-se totalmente preenchido e não deve haver gradiente pressórico entre o AE e VE no final da diástole.

Qualquer diferença entre ambas deve ser considerado um gradiente AE-VE, sugestivo, portanto de alguma diminuição de área valvar mitral compatível com quadro de estenose dessa válvula, que pode ser graduada em leve, moderada ou grave, quando < 5, entre 5-10 ou > 10 mmHg, respectivamente.

4º passo: Verifique a pressão sistólica do ventrículo esquerdo (PSVE) e a pressão sistólica e diastólica em aorta (PSAo e PDAo)

Nesse momento, veja se há formação de algum gradiente entre a PSVE e a PSAo. A presença de diferenças pressóricas irão apontar para presença de algum grau de estenose aórtica, de maneira semelhante com que exemplificamos no passo 3 em relação a valva mitral.

A comparação entre as diferenças PSAo e PDAo irá apontar para possibilidade de presença de quadro de insuficiência aórtica quando houver maior divergência. Para melhor avaliação da competência valvar aórtica se faz necessário a avaliação da curva pressórica aórtica e da aortografia, onde-se observa de maneira clara a presença ou não de jato regurgitante pela válvula.

De maneira geral – os gradientes pressóricos entre as câmaras auxiliam na quantificação das estenoses valvares enquanto que a curva pressórica e as ‘grafias’ (ventriculografia e aortografia) auxiliam para demonstrar a incompetência.

5º passo: observe o cálculo do débito cardíaco, fornecido em Litros/min e a Resistência Vascular Pulmonar, habitualmente fornecida em Woods.

Vamos aplicar agora o que foi falado em um caso mais completo:

CASO 4

Paciente sexo feminino 45 anos avaliação de insuficiência mitral com dúvida em relação a sua importância por discordância clínica x ecocardiográcica.

PCP: 25 mmHg
PAPm: 36 mmHg
GTP: 11 mmHg
VE: Sístole: 130 D1: 0 D2: 22 mmHg
Ao: Sístole: 120 D1 70 M (média): 87 mmHg

Paciente tem uma PCP alta de 25 mmHg. Portanto, primeira conclusão é que deve haver problemas em câmaras esquerdas, mas ainda não sabemos – pode ser valvopatia mitral, aórtica ou até mesmo disfunção ventricular de outras etiologias.

Avaliando a PAPm vemos que está aumentada, mas com GTP menor que 12, ou seja, esse aumento é apenas secundário aos valores pressóricos aumentados em câmaras esquerdas. Portanto, um quadro de Hipertensão Pulmonar Pós-Capilar.

Avaliando a PD2VE temos um valor de 22 em relação a CP de 25, ou seja, há um gradiente pressórico entre ambas as cavidades sugerindo uma grau leve de estenose mitral, muito dificilmente sendo responsável por tamanho aumento em CP.

Em seguida, observamos apenas discreto gradiente sistólico entre VE-AO (130-120) de 10 mmHg, apontando para apenas uma discreta estenose aórtica. Da mesma forma, não há divergência da PAo sistólica (120) e diastólica (70) e a aortografia não mostra refluxo da aorta para o VE, excluindo IAo como causa da lesão.

Finalizando o exame, é feita a ventriculografia que se observa abaixo ( veja a seta localizando a área de refluxo mitral ):










Observe o refluxo que ocorre pela valva mitral. Portanto, a insuficiência mitral importante é a razão para a sintomatologia do paciente.

Conclusão:

O cateterismo com aferição de pressões e gradientes intra-cavitários é um excelente método diagnóstico complementar. Contudo, sua correta interpretação irá depender de todo um conjunto de variáveis clínicas que incluem uma boa coleta de história, cuidadoso exame físico e, principalmente, bom senso!

Leitura sugerida:

Tarasoutchi F, Montera MW, Grinberg M, Barbosa MR, Piñeiro DJ, Sánchez CRM, Barbosa MM, Barbosa GV et al. Diretriz Brasileira de Valvopatias - SBC 2011 / I Diretriz Interamericana de Valvopatias - SIAC 2011. Arq Bras Cardiol 2011; 97(5 supl. 1): 1-67. Disponível aqui.

HOETTE, Susana; JARDIM, Carlos  and  SOUZA, Rogério de. Diagnóstico e tratamento da hipertensão pulmonar: uma atualização. J. bras. pneumol. [online]. 2010, vol.36, n.6 [cited  2016-01-28], pp. 795-811. Disponível aqui

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

FA e DAC estável: preciso manter AAS + Varfarina sempre ?

Uma situação muito comum em nossa rotina é quando aquele seu paciente coronariopata crônico que passa a apresentar fibrilação atrial. Essa situação chega a ocorrer em até 20% de seus pacientes com DAC estável ( para fins de definição se considera um paciente estável aquele sem necessidade de revascularização ou história de IAM há mais de 12 meses).

A dúvida que surge em seguida é: devo introduzir Varfarina mantendo o AAS ? Devo manter apenas a Varfarina ? 

A questão é que a associação AAS + Varfarina sabidamente resultará em maior desfecho de sangramento, sobretudo gastro-intestinal. Contudo, o custo benefício seria maior quando se comparado a possível redução de novos infartos, AVC e mortalidade ?

Em um editorial JACC, em 2014, Dr Dauerman, sintetiza o pensamento vigente em relação a este tema. Mostrando dados compilados de 4 grandes publicações ( 3 observacionais + 1 RCT) - veja tabela 1 logo abaixo - a mensagem que se desenha seria: não tenha tanto medo em relação a anti-agregação plaquetária no paciente usando Varfarina. Não há benefício para prevenção de eventos isquêmicos, mas há aumento do risco de sangramento nesses pacientes.

Ficam algumas ressalvas em relação a os estudos apresentados haja vista que: a maioria deles não são randomizados prospectivos, mas sim coortes e registros, além de em alguns ( ORBIT AF) a população alvo não era propriamente portadores de DAC, mas sim população geral . Além disso, os resultados do WOEST foram comparado clopidogrel + Varfarina x AAS/Clopidogrel/Varfarina em cenário pós intervenção ( < 12 meses pós intervenção e assim não incluindo o foco do nosso post).

Por fim,  na doença coronária estável parece ser razoável, sobretudo naqueles indivíduos com maior risco de sangramento, considerar a suspensão do AAS e manutenção apenas da Varfarina em longo prazo.

Estudos randomizados controlados com maior N de pacientes parecem ser necessários para melhor poder de discriminação de desfechos sobretudo em pacientes que foram revascularizados com stents para avaliar melhor a terapêutica em relação ao uso de anticoagulação associada ou não a antiagregação na população crônica.



Leitura sugerida:

1) Atrial fibrillation in outpatients with stable coronary artery disease: results from the multicenter RECENT study. Zielonka e cols.  2015;125(3):162-71. Epub 2015 Jan 30.

2) Reconsidering the Necessity of Aspirin in Stable Coronary Artery Disease*. Harold L. Dauerman, MD. Editorial Comment. JACC, J Am Coll Cardiol. 2014;64(14):1437-1440. doi:10.1016/j.jacc.2014.08.001. Disponível aqui

3) Dewilde WJ, Oirbans T, Verheugt FW, et al., WOEST study investigators. Use of clopidogrel with or without aspirin in patients taking oral anticoagulant therapy and undergoing percutaneous coronary intervention: an open-label, randomised, controlled trial. Lancet 2013;381:1107–15.

4) Steinberg BA, Kim S, Piccini JP, et al., ORBITAF Investigators and Patients. Use and associated risks of concomitant aspirin therapy with oral anticoagulation in patients with atrial fibrillation: insights from the Outcomes Registry for Better Informed Treatment of Atrial Fibrillation (ORBIT-AF) Registry. Circulation 2013;128: 721–8.

5) Lamberts M, Gislason GH, Lip GY, et al. Antiplatelet therapy for stable coronary artery disease in atrial fibrillation patients taking an oral anticoagulant: a nationwide cohort study. Circulation 2014;129:1577–85

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Desafio de ECG 13 - Qual diagnóstico eletrocardiográfico?


Fonte: arquivo pessoal do autor.

O que se pode ver nesse ECG ? Há alguma alteração patológica de nota ou apenas um achado habitual ?

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Desafio de ECG - Caso 12 - Comentário - Veja o ECG clicando aqui


No primeiro ECG temos um ritmo sinusal com ondas T apiculadas. No DII longo notamos período de bigeminismo.

No segundo ECG, observe que surge um supra-desnivelamento do segmento ST associado a uma QRS alargado, não precedido por onda P, que ocorre justamente no meio do ciclo dos intervalos RR sinusais.

Esse achado pode gerar alguma polêmica, sobretudo pela possibilidade da ocorrência de BRD intermitente ( sobretudo associado a SCA em com acometimento de artéria descendente anterior proximal). Contudo, a ausência de onda P precedente o ritmo e o padrão de 'R' puro em V1 afastam essa possibilidade.

Mas então o que justificaria o achado ?

Trata-se da presença de extra-sistoles ventriculares de padrão originadas do Ventrículo Esquerdo ( 'tem um padrão de BRD'), provavelmente da região septal de padrão interpolado, ou seja, ela ocorre entre os QRS sinusais, mas não apresenta a tradicional pausa compensatória pós extra-sístole. Esse padrão de extra-sístole - também chamada de 'extra-sístole em sanduíche'-  sugere que a origem do batimento ectópico seja ventricular, mesmo nos casos em que eventualmente não ocorra alargamento do QRS.

Veja que as EEVV não impedem a visualização do supra-desnivelamento do segmento ST em toda parede anterioe e também em região de parede lateral (D1 e aVL), falando muito a favor de acometimento de artéria descendente anterior em sua porção proximal, antes mesmo da emissão do ramo septal.

Setas pretas indicam a presença da onda P precedente o QRS sinusal. As setas vermelhas apontam o QRS 'normal' do paciente com a presença do supra-desnivelamento do segmento ST. As setas verdes indicam a presença do QRS 'aberrante' da extra-sístole ventricular interpolada. Fonte do ECG: arquivo pessoal do autor


Paciente foi imediatamente encaminhado a sala de hemodinâmica onde se fez cateterismo evidenciando lesão de artéria descendente anterior proximal, que foi tratada através de angioplastia + colocação de stent.





quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Pericardite aguda - Interface com a Reumatologia

*Por Felipe Mendonça de Santana
                
Uma pergunta frequentemente realizada por clínicos e cardiologistas, quando diante de um paciente com pericardite aguda, é se existe uma doença sistêmica subjacente responsável pelo quadro, o que pode acarretar decisões terapêuticas e prognósticos diversos.

Em artigo recentemente publicado no JAMA, demonstra-se que 80 a 90% das pericardites são caracterizadas como idiopáticas/virais, enquanto as doenças inflamatórias sistêmicas são quantificadas junto com as síndromes pós-lesão pericárdica (p.ex pós-pericardiotomia), correspondendo a  3-7% dos casos.   
                
Dentre as doenças inflamatórias sistêmicas, destacam-se dois grandes grupos de doenças reumatológicas: as doenças do tecido conjuntivo (“colagenoses”) e as vasculites sistêmicas.

Das doenças do tecido conjuntivo, a mais comumente associada à pericardite aguda é o lúpus eritematoso sistêmico (LES). Pensando nessa hipótese etiológica, uma coisa deve sempre vir em mente: dificilmente um LES abre um quadro como uma pericardite aguda isolada.

Nos pacientes lúpicos que vêm a desenvolver pericardite aguda, esta costuma, de fato, estar presente desde o flare inicial, porém raramente é a manifestação dominante. Sendo assim, em um paciente assintomático dos demais sistemas (pele, articulações, SNC etc), sem história reumatológica prévia, sem “penias” no hemograma e com função renal estável, dificilmente terá como etiologia de sua pericardite um LES.

As outras duas doenças do tecido conjuntivo associadas à pericardite aguda são a esclerose sistêmica (ES) e a artrite reumatoide (AR), porém em ambas a pericardite é considerada uma manifestação incomum.

Quanto à pericardite aguda recorrente, não raro são encaminhados ao reumatologista para investigação de “colagenose”. Se ausente manifestações dos demais sistemas, a pesquisa de auto-anticorpos (o famoso “reumatograma”) pode atrapalhar mais do que ajudar. Um estudo interessante, publicado em 2007, decidiu seguir pacientes com pericardite aguda recorrente, a maioria com etiologia idiopática, porém alguns com etiologias diversas incluindo colagenoses, avaliando a positividade do FAN no baseline. Resumindo o estudo, FAN estava presente em até 40% dos pacientes com pericardite idiopática, geralmente em baixos títulos, e a sua positividade no início do estudo não ajudou a diferenciar dentre os poucos que abriram uma colagenose ao longo do acompanhamento.  Ou seja, FAN positivo em pacientes com pericardite recorrente não significa doença reumatológica.

Das vasculites sistêmicas, a que mais está associada à pericardite aguda é a granulomatose eosinofílica com poliangiíte (GEPA, antiga Síndrome de Churg-Strauss). Apenas a título de recordação, o quadro é constituído por manifestações de vias aéreas superiores, pneumonite com infiltrados migratórios, eosinofilia,  mononeurite múltipla e manifestações cardiovasculares. Quinze a trinta por cento das GEPAs desenvolvem pericardite. Lembramos que, apesar da GEPA ser considerada uma vasculite ANCA-associada (geralmente p-ANCA), os pacientes com manifestações cardiovasculares, incluindo a pericardite, são mais frequentemente ANCA negativos. Ou seja, em pacientes com pericardite aguda, com outras manifestações sistêmicas e de demais órgãos compatíveis, a negatividade do ANCA não exclui o diagnóstico de GEPA.

Outras vasculites sistêmicas associadas, em menor intensidade, à pericardite aguda são a doença de Behçet (úlceras orais, úlceras genitais, uveíte, manifestações cutâneas) e a poliarterite nodosa (sintomas sistêmicos, artrite/artralgia, neuropatia periférica, manifestações cutâneas, nefropatia vascular com múltiplos aneurismas).

Em resumo, as doenças reumatológicas constituem causa infrequente de pericardite aguda, porém esta é uma manifestação comum de colagenoses e algumas vasculites. A identificação da doença sistêmica é de suma importância, pois o tratamento vai diferir das pericardites idiopáticas/virais (AINEs com ou sem colchicina). Na reumatologia, geralmente o uso de corticosteroide (em diversos esquemas,  que vão desde prednisona oral em dose moderada à pulsoterapia endovenosa), com imunossupressores, orais ou endovenosos, compõem o esquema terapêutico. 

 * Graduado em Medicina pela Universidade Federal de Pernambuco. Médico com residência em Clínica Médica pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Atualmente é residente em Reumatologia pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Currículo Lattes.

Leitura sugerida:

1) COGHLAN  J. G, SCHREIBER  B, D’CRUZ  D. P. The heart in rheumatic disease. In: HOCHBERG M. C. Rheumatology. Sexta edição. Philadelphia: ELSEVIER, 2015. p. 267-272

2) Imazio M, Gaita F, LeWinter M. Evaluation and Treatment of Pericarditis: A Systematic Review. JAMA. 2015 Oct 13;314(14):1498-506

3) Miloslavsky E, Unizony S. The heart in vasculitis. Rheum Dis Clin North Am. 2014 Feb;40(1):11-26.Imazio M et al. Antinuclear antibodies in recurrent idiopathic pericarditis: prevalence and clinical significance. Int J Cardiol. 2009 Aug 21;136(3):289-93

               

                                

sábado, 9 de janeiro de 2016

ACLS 2015: Adeus definitivo a vasopressina ?

Quando as atualizações das diretrizes do ACLS ( Advanced Cardiovascular Life Support ) foram publicadas no Circulation no final de 2015, uma verdadeira caça ao tesouro se realizou para documentar quais as grandes novidades em relação as recomendações feitas em 2010.

Uma das que mais chamou atenção foi a 'Retirada da Vasopressina 40 UI como análago a primeira ou segunda dose de Epinefrina 1 mg, quando indicada'.

Muitos falaram do 'fim da vasopressina'. Mas será que é isso mesmo ?

O primeiro ponto a se destacar é que, de fato, a retirada da droga nesse cenário se deve não a inadequação da mesma, mas sim para fins de simplificação do algoritmo ( uma vez que cada vez mais vem se percebendo que quanto menos coisas para se saber e mais se focar no básico - leia-se compressões torácica de alta qualidade - melhores desfechos serão conseguidos ). Lembrando que até mesmo a evidência para o uso de epinefrina não provém de estudos de alta qualidade.

Retiro trecho do sumário executivo na página S319: '' Vasopressin was removed from the ACLS Cardiac Arrest Algorithm as a vasopressor theraphy in recognition of equivalance of the effect with other avaliable interventions (eg, epinephrine). This modification valued to SIMPLICITY of approach toward cardiac arrest when 2 THERAPIES WERE FOUND TO BE EQUIVALENT''.

O segundo é que a mesma diretriz que afasta a droga de maneira isolada no manejo avançado a parada cardiorespiratória, introduz o conceito de uso potencial da mesma na chamada associação VEA ( Vasopressina / Esteróides / Adrenalina ) no atendimento da PCR e nos cuidados pós-PCR para pacientes submetidos a PCR intra-hospitalar.

A evidência para essa indicação provém sobretudo do autor grego Mentzelolopoulos e seus colaboradores em estudo publicado no JAMA, em 2013. Sob o título Vasopressin, Steroids, and Epinephrine and Neurologically Favorable Survival After In-Hospital Cardiac Arrest. A Randomized Clinical Trial, o autor avaliou 268 pacientes de 3 Hospitais Gregos submetidos a PCR intra-hospitalar entre 2008-2010, os dividindo em 2 grupos:

1) Grupo VEA ( originalmente 'VES' ): onde os doentes receberiam no 1 ciclo metilprednisolona 40 mg + epinefrina 1 mg + vasopressina 20 UI e, nos demais ciclos, a cada 3 minutos, associação de epinefrina 1 mg + Vasopressina 20 UI, até um máximo de 5 ciclos. Após, havendo retorno a circulação espontânea (RCE), os mesmos receberiam hidrocortisona 300 mg/d por 7 dias.

2) Grupo Controle: onde os doentes receberiam epinefrina 1 mg + 2 ampolas de placebo ( substituindo a metilprednisolina + vasopressina) no primeiro ciclo de medicações e, nos demais ciclos, a cada 3 minutos, associação de epinefrina 1 mg + solução salina. Havendo RCE, os mesmo recebiam salina simbolizando a comparação de placebo com a hidrocortisona.

O desfecho primário seria o RCE por 20 ou mais e a sobrevida na alta hospitalar com uma boa capacidade neurológica, utilizando a Glasgow-Pittsburgh Cerebral Performance Category 1 ou 2. Onde, de maneira resumida, 1 paciente com boa capacidade neurológica, 2 com prejuízo moderado, 3 grave, 4 coma e 5 estado vegetativo.

Esse autor incluiu todos os ritmos de parada em seu estudo, com óbvio predomínio dos ritmos não-chocáveis, sobretudo assistolia ( 70%), uma vez que esses são bem mais prevalentes na parada intra x extra-hospitalar, motivo pelo qual, dentro do hospital, é muito mais saudável se trabalhar com a prevenção de PCR e detecção precoce de sinais de alarme pré-PCR, que é bastante enfatizado nas novas diretrizes do ACLS e já é uma prática cada vez mais comuns através dos time de resposta rápida, cada vez mais presentes.

Veja a tabela 1 e 2 abaixo:



A conclusão do estudo foi que a associação de VEA resultou em maior probabilidade de estar vivo ao final da internação associado a um melhor prognóstico neurológico na população estudo quando comparado ao uso isolado de epinefrina ( veja tabela abaixo ):



Obviamente que esse foi apenas 1 estudo com amostra pequena e que necessita de outros estudos randomizados controlados com maior N para que possamos dar maior peso a essa associação medicamentosa no contexto da PCR. Além do que, a amostra da população não permite análises para desfecho em longo prazo, que são tão ou mais importantes do que a própria mortalidade intra-hospitalar.

De qualquer forma, fica o aviso: a vasopressina ainda vive...e seu uso associado a corticóide e epinefrina, pelas diretrizes do ACLS 2015, PODE SER CONSIDERADO em pacientes submetidos a PCR inter-hospitalar.

'' As a result of this study, in IHCA ( Intra-Hospitalar Cardiac Arrest ), the combination of intra-arrest vasopressin, epinephrine, and methylprednisolone and postarrest hydrocortisone as described by Mentzelopoulos et al may be considered; however, further studies are need before the routine use of this therapeutic strategy can be recommended ( Class IIb, LOE C-LD)''.

Mais estudos serão necessários para consolidar ou refutar essa associação medicamentosa.

Leitura sugerida:

Mentzelopoulos SD, Malachias S, Chamos C, et al. Vasopressin, Steroids, and Epinephrine and Neurologically Favorable Survival After In-Hospital Cardiac Arrest: A Randomized Clinical Trial. JAMA.2013;310(3):270-279. doi:10.1001/jama.2013.7832. Disponível aqui

Sumário executivo ACLS 2015. Disponível aqui

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Como nomear corretamente as variações anatômicas da artéria descendente anterior ?


Discutindo uma coronariografia em um paciente com síndrome coronariana aguda (SCA) seu assistente fala: ‘Essa é uma bela DA tipo IV, você percebe?’

Você concorda rapidamente, mas no fundo está pensando: ‘Não sabia nem que a DA tinha uma classificação anatômica e muito menos que eram 4’.

Se ninguém nunca te contou agora vamos te contar.

Sumariamente, a circulação coronária é dividida em 2 grandes grupos: território direito -representando pela artéria coronária direita (ACD) – e o território esquerdo – representando pela artéria coronária esquerda (ACE).

A ACE possui uma porção inicial denominada tronco de coronária esquerda (TCE) que subdivide-se em artéria circunflexa (Cx) – que irá ser responsável pela irrigação da parede lateral do ventrículo esquerdo (VE) e uma porção da parede inferior – e a artéria descendente anterior (ADA) que irá irrigar a parede anterior do VE, uma porção de sua parede lateral e 2/3 anteriores do septo interventricular.

A ADA por sua vez pode ser subdividida em 4 tipos:

Tipo I: ADA curta, não irriga o ápice do VE.
Tipo II: A ADA divide com a ACD a irrigação do ápice do VE.
Tipo III: ADA irriga sozinha toda a região do ápice
Tipo IV: ADA irriga todo o ápice do VE além de ultrapassa-lo e irrigar a parede inferior do VE em aproximadamente 25% de sua extensão.

Veja a ilustração abaixo:

Fonte: Retirado de Left Anterior Descending rtery Lenght and coronary atherosclerosis in apicl ballonging syndrome ( veja referência na leitura sugerida)


Leitura sugerida: 

John Hoyt, Amir Lerman, Ryan J. Lennon, Charanjit S. Rihal, Abhiram Prasad. Left anterior descending artery length and coronary atherosclerosis in apical ballooning syndrome (Takotsubo/stress induced cardiomyopathy). Letters to the editor. Internatiol Journal of Cardiology, 5 November 2010, Pages 112–115. Disponível aqui

Perlmutt LM, Jay ME, Levin DC. Variations in the blood supply of the left ventricular apex. Invest Radiol 1983;18:138–40.