domingo, 26 de junho de 2016

Tatuagem e piercing em valvopata: o que recomendar ao paciente?


Fonte: https://pixabay.com/pt/tatuador-tatoo-desenho-556036/

Você está atendendo no ambulatório de válvula um paciente de 22 anos com sequela mitral de febre reumática, manifesta por uma estenose mitral leve, quando, próximo ao final da consulta, ele indaga:

 ''Doutor, posso fazer uma tatuagem?''

É sabido que as quebras de barreira, sobretudo em áreas de mucosa oral, podem levar a bacteremias que, por sua vez, ao encontrar um endocárdio danificado podem resultar no trágico quadro de endocardite.

O questionamento, portanto, é pertinente e a tema polêmico, com grande diversidade de opinião entre médicos e diferentes sociedades médicas sobre o assunto. Além disso, está havendo um aumento do número de pessoas que se encaixe nessa situação. No Brasil, por exemplo, em censo online da Revista Superinteressante, foram mapeados mais de 150 mil tatuagens no ano de 2013 - veja aqui - e, muito provavelmente, esses dados estão subestimados.

Sendo assim, existe base fisiopatológica para recomendação de uso de antibioticoprofilaxia antes de determinados procedimentos. Contudo, esse assunto é motivo de divergência entre diferentes pesquisadores/estudiosos e, de maneira geral, há correntes distintas de pensamento entre algumas importantes sociedades internacionais (americana e europeia) e os especialistas brasileiros. 

Desde o início dos anos 2000, a sequência de guidelines 'gringos' estabelece cada vez mais restrição as indicações de profilaxia - NICE, órgão britânico, em 2008, chegou até mesmo recomendar que não fossem aplicada a antibiotoprofilaxia em procedimentos odontológicos até para pacientes de alto risco de endocardite -  ao passo que as nossas recomendações - atualizadas em sua última vez nas II Diretrizes de Perioperatório de 2011 - ainda permanecem mais amplas e acabam sendo justificadas pelo fato de, no geral, a população brasiléira ter pior acesso aos sistemas médico e odontológico.

Além disso, embora ainda em pequeno número, existem relatos de quadros de endocardite após a realização de tatuagem e peircengs, sobretudo quando manipulação da língua. 

A importância do tema fez com que a ESC, em seus últimos guidelines de 2015, colocasse um tópico específico a respeito dessa situação, o qual apresentamos abaixo:

- TODOS os doentes com valvopatia, portadores ou não de prótese, devem ser esclarecidos a respeito dos riscos de endocardite e DESENCORAJADOS a realizar qualquer tipo de arte corporal que envolvam quebra de barreira cutâneo-mucosa, p.e. tatuagens ou piercings.

- Se mesmo assim o doente insistir em realizar o procedimento, o mesmo deve ser realizado em condições estéreis.

- NÃO HÁ indicação de realização de antibioticoprofilaxia para essas situações, bem como outros procedimentos cutâneos, desde que não haja infecção ativa no local, mesmo para doentes considerados de alto risco.

Quadro retirado das recomendações de profilaxia de endocardite disponíveis no ESC 2015. Veja que o nível de evidência em relação a antibioticoprofilaxia é C, sobretudo devido a escassa literatura a respeito do tema.

NA PRÁTICA

As evidência sobre o tema são fracas e os estudos com alta chance de viés. Sendo assim, como de se esperar as recomendações são de nível de evidência C. Portanto, a recomendação tem mais um poder de sugerir uma conduta do que 'bater o martelo' e fechar a questão. Entretanto, apesar de não ser a melhor evidência possível, é a melhor disponível e é o que temos para nos pautar da parte científica.

Porém,o tema é delicado, uma vez envolve não só a saúde física, mas também a sensação de bem estar social e plenitude mental do doente que aprecia a arte corporal. Sendo assim, há de se usar o bom senso.

Deve-se desestimular a prática de artes corporais que envolvam quebras de barreira desde a primeira consulta. Se o paciente, mesmo após esclarecido, insistir no procedimento, dê a orientação que procure um local onde as condições de higiene sejam impecáveis, sem reutilização de material e DECIDA em relação a utilização ou não da antibioticoprofilaxia baseado em uma balança utilizando as variáveis:

- o local aonde vai ser localizado ( pele x mucosa)
- a extensão da tatuagem
- sangramento associado
- risco de valvopatia para endocardite infecciosa
- existência de alergias prévias a algum dos antibióticos possíveis de serem utilizados

Leitura sugerida

1) 2015 ESC Guidelines for the management of infective endocarditis. European Heart Journal (2015) 36, 3075–3123 doi:10.1093/eurheartj/ehv319. Disponível aqui

2)  Infective Endocarditis After Body Art: A Review of the Literature and Concerns. M.L. Armstrong et al. / Journal of Adolescent Health 43 (2008) 217–225

3) Bacterial endocarditis following repeated tattooing. Satchithananda, Walsh, Schofield.Heart 2001;85:11–12

4) II Diretrizes Brasileiras de Perioperatório. 2011. Disponível aqui

5) Censo sobre tatuagens. Revista Super Interessante. Disponível aqui

sexta-feira, 24 de junho de 2016

Hipocalemia como causa de PCR: devemos repor potássio EV in bolus durante a RCP?

Fonte: http://www.glogster.com/gannawin/potassium-k-/g-6khn6m3g6bgoicbsmja498r

Quando o aluno vai realizar o curso das técnicas de ACLS (Advanced Cardiovascular Life Support) é recomendado, sobretudo nos cenários de parada cardiorespiratória (PCR) por ritmos não-chocáveis (AESP e Assistolia), que o mesmo busque, ativamente, possíveis causas reversíveis/associadas que podem ser diretamente responsáveis pela PCR.

Estas causas popularmente são conhecidas por 5 H's e 5 T's, quais sejam:

- Hipotermia
- Hiper H+ ( Acidose)
- Hipóxia
- Hipovolemia
- Hiper ou HipoCALEMIA 

- Tensão no Tórax ( Pneumotórax Hipertensivo)
- Trombose Coronária ( Infarto )
- Toxinas ( drogas/tóxicos )
- Tamponamento Cardíaco
- Tromboembolismo Pulmonar 

O motivo de se chamar atenção através de regra MNEMÔNICA é fazer com que o aluno do curso rapidamente lembre dessas possíveis situações associadas a PCR e tome uma conduta ao estilo 'SUSPEITOU,TRATOU'.

Contudo, nem sempre o fato de suspeitarmos de uma causa irá, provocar, ainda durante o atendimento da PCR uma conduta ativa. Por exemplo, no T de Trombose Coronária, não se recomenda que o doente seja submetido a tratamento fibrinolitico ainda durante a vigência da PCR. Contudo, é importante que se pense nessa possibilidade para que se institua um tratamento adequado nos cuidados pós-reanimação.

E se a suspeita for de HipoCALEMIA, o que o aluno deve fazer na hora da PCR? Repor potássio em bolus EV?

Muitos profissionais de saúde que lidam com pacientes graves acham que essa é a conduta a ser feita, mas será que a respaldo para tal?

A resposta é NÃO!

Colocamos aqui a recomendação da AHA, baseada em sua última atualização de 2010, que foi mantida na nova publicação de 2015'.

''O efeito da administração in bolus de potássio durante a parada cardíaca suspeita de ser secundária a hipocalemia é desconhecido e deve ser evitado'' 

CLASSE III, Nível de Evidência C.

NA PRÁTICA

Como as condições que dão hipocalemia importante (usualmente considerada aquele onde a concentração sérica fica < 2,7 mEq/L) podem estar associadas a hipomagnesemia e o ritmo assoicado pode ser o de TORSADES de POINTS (torção das pontas) , acaba-se fazendo Sulfato de Magnésio em bolus, mas não potássio em bolus. 

A reposição de potássio até pode começar durante a PCR, mas deve ser lenta e ao longo de horas e não através de dose em bolus. 

Fora isso, as manobras de RCP devem ser o tratamento habitual pregado pelo ACLS, quando da sua última atualização em 2015.

Leitura Sugerida

Circunstâncias Especiais na Ressuscitação. Guia Interativo On-line da AHA. Disponível aqui.

quarta-feira, 22 de junho de 2016

Há espaço para trombólise pré-hospitalar para Síndrome Coronaria Aguda com supradesnivelamento do segmento ST (SCACSSST)?

O uso de fármacos fibrinolíticos para tratamento de SCA com supra do ST já faz parte do arsenal médico há mais de 30 anos.

Sabemos que o seu benefício é tão maior quanto mais precoce for feito seu uso, com resultados muito bons quando feitos dentro das primeiras 3-6 h após o inicio dos sintomas, mas tolerado até 12 h após (veja na figura abaixo):


O sistema de atendimento pré-hospitalar brasileiro - Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (S.A.M.U.) - consta de dois tipos de unidade de intervenção, Unidades de Suporte Básico (USB), ambulância composta por motorista-socorrista (MS) e técnico de enfermagem (TE) e as Unidades de Suporte Avançado (USA), ambulância tipo UTI composta por MS, enfermeiro e médico. Essas unidades são coordenadas por Centrais de Regulação para onde são direcionadas as chamadas 192 e, a depender do tipo de ocorrência, o médico regulador define qual tipo de unidade a ser enviada. *

Apesar de cobertura ainda precária a nível nacional, sobretudo no interior do País, é inegável o aumento da oferta de serviços pré-hospitalares de urgência nos últimos anos. A importância disso, em se tratando de IAM, é o conceito de que 'tempo é miocárdio' e, sendo assim, quanto menor o tempo entre o início dos sintomas e o atendimento da equipe de saúde melhor.

O tempo habitual de um paciente iniciar seus sintomas até a chegada ao hospital fica em torno de 3-4h. Isso ocorre por diversos motivos: desconhecimento da população de sinais/sintomas de IAM (idosos e baixo nível socioeconômico), pessoas que moram em áreas rurais ou periféricas sem acesso rápido a serviços hospitalares, o tempo de deslocamento até chegar no estabelecimento de saúde.

Além disso, não basta chegar ao hospital. Uma vez dentro do Pronto-Socorro ainda há vários estágios em que poderemos ter atraso na terapia final do IAM com Supra:

- registro do paciente e triagem
- fazer o atendimento clínico e o ECG 12 derivações
- conseguir maca com monitorização do doente
- eventualmente a necessidade de consulta a centro com cardiologista para definição de conduta ( isso é comum em PS ou UPAs que contam com programas de telecardiologia)
- tempo de preparo da medicação

A realização da terapia fibrinolítica ainda antes da chegada ao hospital diminui o tempo de isquemia e acaba por diminuir complicações a curto, médio e longo prazo. Além disso, estudos de farmacoeconomia, demonstram que a mesma pode, inclusive, baratear o custo de tratamento desses pacientes, quando comparados a fibrinólise intra-hospitalar, conforme dados de estudo nacional publicado em 2008, que demonstrou economia de 176 reais por paciente.

Grandes estudos tem mostrado a segurança do uso da fibrinólise ainda no pré-hospitalar. O ganho médio de tempo é 1 hora, resultando numa queda de 17% na mortalidade ou 21 vidas salvas por 1.000 pacientes tratados.

PRÉ-REQUISITOS

Ambulância tipo UTI móvel, portanto com médico a bordo, com possibilidade de realizar:

- ECG 12 derivações
- Monitorização eletrocardiográfica continua
- Capacidade de transmissão para centro de cardiologia de referência para discussão do ECG ( recomendável, mas não obrigatório )
- Checklist individual contendo as contra-indicações que deve ser anexado a ficha de atendimento médico ( veja aqui )
- Monitorização de pressão-arterial, frequência cardíaca e oximetria de pulso.
- Cardiodesfibrilador funcionante
- Medicações para uso em caso de PCR
- Deve-se haver um fluxo específico para que esses pacientes sejam direcionados para hospital de referência em cardiologia com disponibilidade de realização de angioplastia 24h.
- Dados sobre os desfechos clínicos dos doentes e outros parâmetros devem ser atualizados periodicamente para fins de avaliação do programa.

Nesse contexto, o fármaco de escolha é a tenecteplase (TNK), pelo fato de sua administração ser feita em bolus de 5-10 segundos.

Para mais detalhes sobre a realização da trombólise clique aqui

* Essa é uma visão bem básica do como funciona o sistema. A depender da região, há outras modalidades de serviço, como as motolâncias, as ambulanchas e até mesmo unidades intermediárias com enfermeiro, mas sem o médico. O SAMU também não é a única unidade de socorro pré-hospitalar, podendo dividir essa função com outros serviços, tais como: Polícia Militar, Unidades de resgate do Corpo de Bombeiros e outras unidades, como o GRAU ( Grupo de Resgate e Atendimento a Urgências). Não é o foco desse post entrar nesse detalhamento.

Leitura sugerida:

Performance of prehospital fibrinolysis. Uptodate.com/online acesso em set/2015

Prehospital fibrinolysis (thrombolysis) for suspected acute ST elevation myocardial infarction. Uptodate.com/online acesso em set/2015

V Diretriz da Sociedade Brasileira de Cardiologia sobre Tratamento do Infarto Agudo do Miocárdio com Supradesnível do Segmento ST. Arq Bras Cardiol. 2015; 105(2):1-105. Disponível aqui

Araujo, DV e cols. Custo-efetividade da trombólise pré-hospitalar vsintra-hospitalar no infarto agudo do miocárdio.Arq. Bras. Cardiol. v.90 n.2 São Paulo fev. 2008 Disponível aqui

sábado, 18 de junho de 2016

Afinal o que é uma angioplastia de alto risco?

Os critérios na literatura para delimitar objetivamente o que é uma angioplastia de alto risco variam muito entre as publicações. Em geral a avaliação subjetiva de 3 fatores que implicam um maior risco de complicações relacionadas ao tratamento percutâneo determinam se a angioplastia é de alto risco ou não:

1) Paciente ( Critério Clínico)
Idade, função ventricular, DM2, IAM prévio, número de lesões obstrutivas, doença arterial periférica

2) Lesão específica ( Critério Anatômico)
- Determinada por características anatômicas: lesões de tronco de coronária esquerda, bifurcações, angioplastia de ponte de veia safena, lesões ostiais, lesões muito calcificadas e oclusões crônicas
- Determinada por território irrigado pela artéria a ser tratada: artéria derradeira, grande território irrigado pela artéria a ser tratada

3) Situação clínica ( Critério Hemodinâmico)
- Síndrome coronariana aguda, Choque cardiogênico, Complicação mecânica de IAM


Resumo dos principais critérios utilizados na literatura para definição de angioplastia de alto risco. Note que diversos fatores devem ser considerados para definição de uma angioplastia como de alto risco. Fonte: Myat et al. Hemodynamic support for high-risk PCI. JACC intervention 2015



O que muda em classificar uma angioplastia como sendo de alto risco ?

Ao classificar uma angioplastia como sendo de alto risco pode-se programar a equipe para minimizar os risco inerentes ao procedimento. Pode-se:
- antecipar a necessidade de vaga em terapia intensiva
- otimização hemodinâmica e ventilatória durante o procedimento 
- utilizar dispositivo de assistência circulatória durante o procedimento pode minimizar a taxa de complicações





Leitura Recomendada:
1) Myat et al. Hemodynamic support for high-risk PCI. JACC intervention 2015
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/?term=PMID%3A+25700745

2) Werdan et al. Mechanical circulatory support in cardiogenic shock. EHJ 2013
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/?term=PMID%3A+24014384