sábado, 27 de fevereiro de 2016

Desafio de ECG 14 - Qual diagnóstico eletrocardiográfico ?


Náuseas, vômitos em paciente cardiopata de 43 anos. O ECG te ajuda a desvendar a etiologia do quadro? Como ?

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Desafio de ECG - Caso 13 - Comentário - Veja o ECG clicando aqui


Ao iniciar a análise deste traçado, chama a atenção a presença de espículas de marcapasso. De forma mais simples e prática, a nomenclatura dos ritmos de marcapasso consiste de 3 letras. A primeira letra corresponde a câmara que é estimulada (A para átrio, V para ventrículo e D para as duas câmaras), a segunda letra é destinada para a câmara que é "sentida" (da mesma forma, A, V e D) e a terceira letra relaciona-se ao comportamento do marcapasso - "o que ele faz" (I para inibição e T para estimulação - do inglês, trigger. D para as duas funções). Leia o texto completo de laudo de ritmo de marcapasso aqui



Vamos ao eletrocardiograma em questão:



Não nos deixemos impressionar pelas espículas. Começaremos com a identificação do ritmo como habitual (procuraremos a onda P). Observamos a presença de onda P precedendo todo complexo QRS. Além disso, esta onda apresenta características de onda P sinusal, ou seja, o ritmo é comandado pelo nó sinusal. Já podemos iniciar a nomenclatura do ritmo, o marcapasso "sente" o átrio, no caso, o ritmo sinusal. Sendo assim, a segunda letra será A.



Ao continuarmos no traçado, logo após a onda P, vemos a presença de espícula seguida de complexo QRS. Ou seja, o marcapasso que estimula ("triga") o ventrículo. Sendo assim, a primeira letra será V (espícula estimula ventrículo) e a terceira T (trigger).



De forma resumida e falada na prática: o marcapasso sente o átrio e estimula o ventrículo, está operando em VAT.



E o diagnóstico de base do paciente? Qual a maior probabilidade de ser?



Uma vez que, no eletro, há ritmo próprio (sinusal), não há doença do nó sinusal. O marcapasso está servindo como uma "ponte", "pulando o nó atrioventricular", sentindo o átrio e estimulando o ventrículo. Portanto, provavelmente trata-se de um marcapasso implantado por BAVT.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Prótese Biológica x Mecânica: como escolher ?




Desde a década de 1960, com a primeira cirurgia de troca valvar em humanos houve uma grande evolução dos modelos de próteses.

Uma vez indicada a troca de válvula cardíaca imediatamento surge o questionamento sobre qual tipo escolher: mecânica ou biológica ?

Uma válvula ideal deveria ser durável como uma natural, sem efeito trombogênico, não gerar gradiente, fácil de ser implantada e disponível em todos os tamanhos. Obviamente, ela ainda não foi criada e, assim, temos de trabalhar com o que temos. Ainda assim, a escolha correta para o paciente irá resultar em maior durabilidade da prótese.

De maneira geral, a mecânica tem maior durabilidade e, portanto, em tese, mais tempo 'livre de cirurgia' para re-troca. Contudo, às custas da necessidade de anticoagulação com Varfarina por toda a vida. A ausência dessa necessidade, e os pormenores associados a anticoagulação, é justamente a grande vantagem da biológica.

A decisão não é fácil e deve ser partilhada com o paciente e familiares, pois não há um gabarito certo. Sua função é auxiliar na decisão e fornecer os prós e contras de cada opção.

Sendo assim, reunimos aqui situações que favorecem um ou outro tipo:

FAVORECE A ESCOLHA DE PRÓTESE BIOLÓGICA

1) Mulheres em idade fértil que pretendem engravidar
2) Falta de condição social para anticoagulação
3) Falta de estrutura de saúde na localidade onde o doente reside para se coletar/controlar o TP
4) História pessoal de discrasias sanguíneas
5) Pacientes jovens em que o estilo de vida não é favorável a uso de anticoagulantes, seja devido a profissão ou ao fato de não desejarem viver com as certas limitações da anticoagulação ( em relação a atividades esportivas, necessidade de controle do TP, restrições alimentares, etc)
6) Pacientes acima dos 65-70 anos, onde a prótese tende a ter maior durabilidade
7) Pacientes com múltiplas co-morbidades, onde senão espera uma longa sobrevida a ponto de a prótese de deteriorar e necessitar de nova cirurgia
8) Paciente que trabalha com atividades sujeitas a trauma e, assim, sangramento.

FAVORECE A ESCOLHA DA VÁLVULA MECÂNICA

1) Opção do paciente, sobretudo quando menor do que 65-70 anos, uma vez que a maior durabilidade da prótese lhe dará mais tempo livre de cirurgia, ao menos em tese
2) Paciente que já faz uso de anticoagulante por alguma razão. Por exemplo, portadores de fibrilação atrial ou ser portador de valva mecânica e tem FACILIDADE DE SE ATINGIR O INR ALVO. Idealmente, com uma taxa de TP no alvo acima de 70-80% das medidas ( TTR).
3) Boa condição social / entendimento / capacidade de monitorizar automaticamente o TP
4) Ausência de contra-indicação ao uso da Varfarina
5) Risco maior para calcificação/degeneração de prótese biológica: paciente muito jovens, hiperparatireoidismo e/ou insuficiência renal crônica.
6) Pacientes em que o risco de uma segunda abordagem seria muito alto: aorta em porcelana, tórax com irradiação prévia, com deformidade, paciente com osteoporose, usuário crônico de corticóide.

Sendo assim, utilize esses múltiplos parâmetros para decidir, junto a seu paciente, o melhor tipo de prótese a ser implantada.

Leitura sugerida:

How a prosthesis in aortic valve replacement is chosen. An article from the e-journal of the ESC Council for Cardiology Practice Vol. 9, N° 35 - 28 Jun 2011. Disponível aqui


Prosthetic Heart Valves Selection of the Optimal Prosthesis and Long-Term Management Philippe Pibarot, DVM, PhD; Jean G. Dumesnil, MD, FRCP(C). Circulation. 2009;119:1034-1048.

Nishimura et al. 2014 AHA/ACC Valvular Heart Guideline. JACC Vol. 63, No. 22, 2014. June 10, 2014: e57-185


sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Principais pontos do novo Guideline de TEV do ACCP de 2016

No começo deste ano o American College of Chest Physicians (ACCP) publicou uma atualização no guideline de tromboembolismo venoso (TEV), com 54 recomendações contidas em 30 proposições. Algumas recomendações permanecem inalteradas em relação à última publicação, porém à luz de evidências mais recentes, algumas mudanças foram sugeridas. Tendo em vista a importância do assunto para médicos emergencistas, incluindo cargiologistas, preparamos um resumo na forma de tópicos objetivos sobre o novo guideline. Segue abaixo:

1.     Pacientes com TEV não-oncológico preferência por NOAC, seguido por Varfarina, seguido por HBPM
2.     Pacientes com TEV oncológico preferência por HBPM, seguido por NOAC ou Varfarina
3.    Todos os pacientes que for recomendado tratar por um tempo limitado, o fazer por 3 meses (nem mais, nem menos)
4.    Pacientes com TEV não-oncológico com fator de risco transitório cirúrgico ou não cirúrgico, tratar por 3 meses e suspender após.
5.     Pacientes com TEV oncológico (câncer ativo) tratar por tempo indeterminado
6.     Pacientes com TEV espontâneo (1º  episódio), tratar por tempo indeterminado se risco leve ou moderado de sangramento. Tratar por 3 meses se alto risco de sangramento (evidência forte para esta última)
7.    Pacientes com TEV espontâneo (2º  episódio), tratar por tempo indeterminado se risco leve ou moderado de sangramento. Tratar por 3 meses se alto risco de sangramento (evidência fraca para esta última, ou seja, em algumas situações cogitar terapia por tempo indeterminado)
8.     Continua não citando pesquisa de trombofilias
9.    Em pacientes com TVP distal (distal à veia poplítea), pode-se optar por não tratar quando: não tem sintomas locais graves e não tem alto risco de extensão (D-dimero muito positivo, trombose >5cm, diâmetro de trombo >7mm, múltiplas veias acometidas, trombose próxima da poplítea, trombose espontânea, câncer ativo, história de TEV, hospitalizado). Outros fatores pra levar em conta: trombose de veias musculares apenas (gastrocnêmica e sólea) e alto risco de sangramento falam mais a favor de conduta conservadora. Ou seja, a maioria deve anticoagular. Caso optado por não coagular, doppler venoso seriado, no máximo a cada semana, por 2 semanas.
10. Não se recomenda mais meia elástica para prevenção de SPT, apenas para controle de sintomas, agudos ou crônicos,  já existentes.
11. Trombólise continua recomendada para pacientes hipotensos, porém pode se considerar também para pacientes não hipotensos com evidência de disfunção cardiovascular e piora do quadro hemodinâmico em progressão.
12. Se não puder/quiser nenhuma anticoagulação plena, deve usar AAS, pois evidência de redução de recorrência (bem menor que com anticoagulação, contudo)
13.  TEP de baixo risco pode ser tratado em casa desde o primeiro dia ou após breve admissão (<5 dias). Pode se utilizar o PESI (Pulmonary Embolism Severity Index) para guiar. PESI <85 sugere baixo risco. Paciente tem que estar estável, sem sangramentos recentes, sem alterações de TEP submaciço, aderente,  sem disfunção renal grave, hepática grave, sem plaquetas <70mil.
14.   Dos NOACs, pode-se usar  Dabigatran, Apixaban, Rivaroxaban e Edoxaban.
15.   O guideline, em si, não cita doses, porém as trazemos abaixo:
            -Apixaban 10mg 12/12h por 7 dias. 5mg 12/12h até 3-6 meses. 2,5mg 12/12h após. Eliquis® 2,5mg/comp ou 5mg/comp.
      -Rivaroxaban 15mg 12/12h por 21 dias. Após 20mg/d. Xarelto® 10mg/comp, 15mg/comp ou 20mg/comp
          -Dabigatran 150mg 12/12h. Pela bula canadense, redução para 110mg 12/12h para pacientes de alto risco de sangramento (>=75anos com >= 1 fator de risco). Pradaxa® 150mg/comp, 110mg/comp.

 OBS: Para o dabigatran deve-se iniciar com heparinização, e trocar apenas após pelo menos 5 dias.

Caso heparinização com HBPM antes de iniciar qualquer um dos NOACs, aguardar 6-12h (se dose 2xd de HBPM) ou 12-24h (se dose 1xd) para administrar primeira dose do anticoagulante oral. 

Abreviações:
NOAC - Novos Anticoagulantes Orais
HBPM - Heparina de Baixo Peso Molecular
TVP - Trombose Venosa Profunda
SPT - Síndrome Pós-Trombótica
TEP - Tromboembolismo Pulmonar

Leitura sugerida:

1. KEARON C. et al. Antithrombotic Therapy for VTE Disease: CHEST Guideline and Expert Panel Report. Chest. 2016;149(2):315-352

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Novos anticoagulantes orais - algumas considerações para tomada de decisão sobre seu uso

Antes de decidir sobre o uso de novos anticoagulantes orais (NOAC) para realizar anticoagulação sistêmica  fique atento a algumas peculiaridades em relação a Varfarina:

1) Verifique a função renal do seu doente. Todos os NOACs (veja aqui) disponíveis até o momento são contra-indicados para disfunção renal grave ou irão requerer algum tipo de ajuste de dose para casos moderados. 

2) Certifique-se que seu doente, caso anticoagulado por Fibrilação Atrial, não seja portador de valvopatia cardíaca grave ou prótese mecânica, cenário no qual esses novos fármacos não foram aprovados.

3) Certifique-se de que a condição pela qual você está indicando anticoagulação já foi testada e liberada para uso com os NOACs. Na dúvida, use Varfarina.

4) Preço: faça as contas junto ao paciente a respeito do custo mensal do tratamento. Tente compartilhar essa decisão ajudando o doente a fazer o cálculo de maneira simples. Muitas vezes, o custo mensal de 150-200 reais pode ser proibitivo a seu doente. Contudo, não é raro encontrarmos pacientes que, ao jogar na balança financeira os custos com 'pagamento do TP' + ' perda de uma manhã de trabalho para coletar o TP e aguardar passar pelo médico em seguida' + 'gastos com transporte - gasolina/estacionamento' + 'necessidade de acompanhante', acabam considerando mais custo-efetivo o uso dos NOACs, sobretudo no início do tratamento, onde o paciente necessita comparecer com mais frequência ao serviço de saúde para ajuste de dose do remédio.

Obviamente, com as novas tecnologias de comunicação, muitas desses custos anteriormente citados podem ser abreviados pelo simples envio do resultado do exame por email/aplicativos para smartphones/ligação telefônica direta com o médico assistente, que já faz o ajuste da medicação sem necessidade de deslocamento do paciente. O serviço de monitorização telefônica do TP já é uma realidade há algum tempo em alguns serviços públicos e privados do País.

5) Necessidade do uso 2 vezes ao dia, caso da dabigatrana e apixabana. Isso pode ser um problema em pacientes já polimedicados. A rivaroxabana, nesse ponto, acaba tendo certa vantagem por ser em dose única.

6) Falta de um exame específico para testar o nível de anticoagulação do paciente. Isso pode fazer falta naquele indivíduos em que há dúvida da aderência ao tratamento. Além disso, para alguns pacientes, é importante que haja alguma comprovação do 'efeito do remédio' e eles podem, portanto, optar pelo uso da Varfarina. A sensação de que o 'TP' está na faixa pode ser muito tranquilizadora para muitas pessoas.

7) Falta de antídoto específico em caso de sangramento importante, o que não acontece com a Varfarina. ( * apesar que a tendência é que surgem antídotos específicos no mercado, uma vez que já se começaram a sair trials validando alguns fármacos).

O objetivo do post é lhe trazer algumas ferramentas a mais para se por na balança da decisão: Varfarina x NOACs.

O julgamento clínico final deve ser sempre individualizado e compartilhado com paciente/família.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Qual momento ideal de realizar CATE na SCA SSST ?

Quando paciente comparece ao setor de Emergência com dor torácica + supradesnivelamento do segmento ST no ECG não há dúvidas: se disponível, deve-se fazer cateterismo imediatamente.

Conduto, quando se faz um diagnóstico de síndrome coronariana aguda sem supradesnivalemento do segmento ST ( SCA SSST), a abordagem não deve ser tão agressiva em todos os casos.

Baseado na última publicação de revascularização miocárdica do ESC ( European Society of Cardiology) de 2014, temos que, na SCA SSST teríamos 3 extratos de tempo para realizar o CATE baseado em condições clínicas/laboratoriais dos pacientes, quais sejam:

1) CATE ultra-precoce: < 2h da admissão: pacientes de altíssimo risco de desfechos graves.

- Pacientes com angina persistente a despeito das medicações feitas
- Quadro de insuficiência cardíaca aguda / choque cardiogênico
- Instabilidade hemodinâmica franca
- Pós-parada cardiorrespiratória reanimada
- Apresentação com quadro de arritmias ventriculares ameaçadoras de vida

2) CATE precoce: até 24 h da admissão: pacientes de alto risco para desfechos graves.

Pacientes que portem ao menos 1 desses fatores de risco:

- GRACE score > 140 ( disponível para cálculo em qualquer smartphone )
- Aumento ou queda importante da troponina
- Alteração dinâmica do ST ou da onda T ( sintomáticas ou silenciosas)

3) CATE ainda na internação, preferencialmente nas primeiras 72 h.

Na ausência dos critérios para 1 ou 2, pacientes que tenham pelo menos 1 das características:

- DM
- Fração de Ejeção < 40%
- Insuficiência Renal: Clearance < 60 ml/min/m2
- Angina após IAM recente
- CATE recente
- Pacientes com cirurgia de revascularização miocárdica prévia
- GRACE escore de intermediário/alto risco

ATENÇÃO: Recentemente os resultados do estudo RITA-3 trial de 10 anos de seguimento, mostrando que a estratégia precoce ( < 72h) x CATE baseado uma seleção dos pacientes nas SCA SSST não mostrou redução de mortalidade em longo prazo podem vir a embaralhar ainda mais essa discussão. Contudo, essa é a recomendação vigente da ESC e é corroborada pela grande maioria das outras sociedades de cardiologia. 

Lembrando que as evidências nessa área são contínuas e o que é verdade hoje, pode não ser amanhã. Por isso, sempre fique atento as novas informações!

Leitura sugerida:

2014 ESC/EACTS Guidelines on myocardial revascularization.European Heart Journal (2014) 35, 2541–2619. Disponível aqui.

10-Year Mortality Outcome of a Routine Invasive Strategy Versus a Selective Invasive Strategy in Non–ST-Segment Elevation Acute Coronary Syndrome The British Heart Foundation RITA-3 Randomized Trial. JACC VOL. 66, NO. 5, 2015. AUGUST 4, 2015:511 – 2 0. Disponível aqui

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Controle glicêmico e o risco cardiovascular: nem tudo associado apenas a nível glicêmico

Seu João, 60 anos, chega em seu consultório com diagnóstico recente de diabetes mellitus (DM) tipo II. Apresenta uma glicemia de jejum de 220 mg/dl e hemoglobina glicada (HbA1C) de 8,5.

Muito chateado com o diagnóstico da doença e já pensando no possível tratamento, ele lhe faz a seguinte pergunta:

''Doutor, se eu controlar a minha diabetes com rigor tenho menor chance de morrer de ¨infarte¨?!''

Para responder a Sr João, devemos lembrar que o paciente diabético pode cursar com complicações macrovasculares e microvasculares. Nas primeiras, destacam-se o acidente vascular encefálico (AVE) e a doença arterial coronariana (DAC), tendo como seu especto de apresentação mais grave o infarto agudo do miocárdio (IAM). Nas segundas, ganham importância a doença renal crônica (DRC), a retinopatia e a neuropatia diabética.

Já está bem estabelecido que o controle glicêmico agressivo comparado com o padrão - ''Standard'' - reduz as complicações microvasculares. 

Em artigo do New England Journal of Medicine (NEJM), publicado em 1993, (acesse aqui ), os autores demonstraram que o controle intensivo  de glicemia através de aplicações de insulina 3 ou mais vezes ao dia e guiado de acordo com a  glicemia capilar foi superior ao tratamento padrão (2 aplicações ao dia) em paciente com DM insulino-dependente, tanto na prevenção primária quanto na secundária de complicações microvasculares da DM.

Contudo, em relação as complicações macrovasculares a relação entre controle 'intensivo x standard' não é tão cristalina. Os principais trabalhos da década de 80/90 não conseguiram demonstrar redução significativa de eventos macrovasculares, como o IAM.

Então, para entrar mais a fundo nessa seara vamos no reportar a uma metanálise publicada em 2009 no LANCET com os principais estudos que compararam o controle glicêmico  mais agressivo x padrão.





Dos 5 Trials escolhidos para o estudo, podemos observar que UKPDS pegou pacientes com diagnóstico mais precoce de diabetes (até 1 ano) e os demais estudos, pacientes com diagnóstico mais tardio (> 8-10 anos). 

A diferença entre os tratamentos (standard x intensivo) variava de acordo com o estudo  e a diferença média de controle glicêmico  entre ambos os grupos (standard x intensivo) foi de 0,9 % na Hb glicada. As piores Hb glicadas de base foram do ACCORD e VADT com média de 8,3% e 9,4%, respectivamente.

Uma menção especial ao ACCORD. Nesse estudo o controle glicêmico do grupo intensivo foi o mais rigoroso com objetivo de reduzir 1,5% da Hb glicada em 6 meses e  deixa-la < 6% em 1 ano. Foi utilizado até insulina bolus para atingir esse controle.

E qual resultado? O controle intensivo da glicemia reduz o risco cardiovascular?



Sim. Observamos que o diamante maior está a esquerda  da linha, demostrando que o controle glicêmico intensivo para IAM não fatal e DAC (incluindo morte cardiovascular) é protetor, reduzindo em 17% e 15% o desfecho. Vale lembrar que isso ocorreu as custas de mais hipoglicemias e ganho de peso (média 2 kg).

E  quando a mortalidade geral e AVC?



Nesse caso, não se demonstrou efeito protetor. Inclusive, no ACCORD, observou-se até um aumento na mortalidade geral. Esse fato talvez relacionado ao controle mais agressivo e rápido da glicemia (mais hipoglicemia) em pacientes com DM diagnosticada há mais tempo e com Hb glicada de base mais alta.

Pra resumir... 

O controle glicêmico intensivo:
-  Reduz IAM não fatal e evento relacionado a DAC.
-  Aumenta o ganho de peso e a incidência de hipoglicemias.
-  Não modifica a mortalidade geral e AVC.

E quais recomendações devo seguir?

Em vista desses resultados algumas condições clínicas devem ser lembradas na hora de controlar a glicemia do seu paciente com DM tipo II. Essa ilustração da ADA publicada em 2014 mostra as principais condições clinicas que devem ser levadas em conta. O paciente com diagnóstico recente, alta expectativa de vida, sem muitas comorbidades, sem complicações vasculares estabelecidas e baixo risco de hipoglicemia em tese seria o paciente ideal e que mais se beneficiaria do controle glicêmico mais rígido.


As recomendações formais de controle glicêmico podem ser resumidas na tabela abaixo:


Pra finalizar...

Algo importante que deve ser considerado  nessa discussão de tratamento da DM e  risco cardiovascular é a visão "glucocêntrica" do tratamento. Sabemos hoje que a formação da placa de aterosclerose e sua posterior erosão causando IAM vai muito além  da hiperglicemia e da formação dos AGEs (produto final da glicação avançada). As outras vias clássicas  de formação da placa de aterosclerose em pacientes não diabéticos também estão amplificadas nos pacientes com DM como a inflamação, a lesão endotelial e a ativação simpática. Futuros tratamentos que tratem a doença, em sua patogênese mais ampla, surgem como uma boa perspectiva ao tratamento padrão de controle da glicemia na redução de risco cardiovascular.

Um estudo que vale a pena ser citado nesse contexto é o EMPAREG, publicado no NEJM em 2015. Ele mostrou redução de mortalidade geral e cardiovascular com uso da empaglifozina nos pacientes com DM  e alto risco cardiovascular em um seguimento de 3 anos. O mais interessante é a diferença média final de HB glicada entre os dois grupo que pode ser vista na tabela abaixo:

                                                                                                                                                                  A diferença  foi menor que 0,4 na Hb glicada, sugerindo hipótese de que a redução de evento cardiovascular vai muito além do controle glicêmico. Lembre-se, a diabetes é muito mais do que apenas 'baixar a glicemia'. Nesse caso específico, ainda permanece obscura em que via clássica da formação da placa de aterosclerose e instabilidade da mesma essa droga atuou. Importante observar que esta redução de mortalidade não  foi observada com drogas de ação semelhante a empaglifozina (inibidor da SGLT2 cujo mecanismo aumenta excreção de glicose pela urina).

Leitura sugerida:

Effects of Intensive Glucose Lowering in Type 2 Diabetes. The Action to Control Cardiovascular Risk in Diabetes Study Group*N Engl J Med 2008;358:2545-59. Disponível aqui

Kausik K Ray, Sreenivasa Rao  et al.Eff ect of intensive control of glucose on cardiovascular outcomes and death in patients with diabetes mellitus: a meta-analysis of randomised controlled trials Lancet 2009; 373: 1765–72     

Bernard Zinman, M.D., Christoph Wanner, M.D., John M. Lachin, Sc.D., Empagliflozin, Cardiovascular Outcomes, and Mortality in Type 2 Diabetes. N Engl J Med 2015;373:2117-28.  

Standards of medical care  in Diabetes-2014. By the American Diabetes Association. Disponível aqui.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

CATE Completo: o que é isso e como ele pode te ajudar na avaliação de doenças valvares cardíacas !

No seguimento do paciente com valvopatia importante eventualmente nos deparamos com situações onde ocorre certa discrepância entre achados clínicos x ecocardiográficos.

Dai surge a dúvida: afinal,  essa doença valvar é ou não é anatomicamente importante ?

Nessa situação, a utilização da cateterização de câmaras cardíacas para aferição de valores de pressóricos, medidas de gradientes entre as câmaras e injeção de constrastes para realização de 'grafias' podem auxiliar no diagnóstico e quantificação de gravidade da doença.

O procedimento é denominado CATE completo, em que se é feito CATE Direito + Esquerdo com cineangiocoronariografia + Ventrículo e Aortografia

São aferidas as pressões em Átrio Direito (AD), Ventrículo Direito (VD), Artéria Pulmonar (PAP), Pressão Capilar Pulmonar ou Pressão de Oclusão da Artéria Pulmonar (PCP ou PAOP), Ventrículo Esquerdo (VE) e Aorta (Ao). Esses valores podem ser obtidos em período de sístole (S) e diástole inicial (D1) ou final (D2).

Além da aferição pressórica, a ventriculografia nos dará noção de competência valvar mitral (excelente para detecção de insuficiência mitral) e de alteração de mobilidade da parede ventricular (podendo apontar para alterações difusas ou segmentares de mobilidade). A Aortografia mostrará se há competência valvar aórtica.

Por fim, quando indicado – seja em investigação de etiologia de dor torácica ou como exame de rotina de pré-operatória valvar – realiza-se a cineangiocoronariografia.

Contudo, carecem de fontes onde se possa realizar uma leitura direcionada para a interpretação das medidas pressóricas realizadas nesse exame e o avaliador, ao deparar-se com o laudo fornecido, pode encontrar alguma dificuldade em extrair dele informações essenciais.

Sendo assim, o objetivo desse post é fornecer alguma padronização para uma análise dos resultados do exame.

A pressão de artéria pulmonar média (PAPm) é considera normal até 20 mmHg e o valor para que seja caracterizada hipertensão pulmonar (HP) fica em torno de 25 mmHg, por convenção.

A pressão do capilar pulmonar (PCP) reflete a pressão em átrio esquerdo e é normal entre 12-15 mmHg.

O valor de PAPm subtraído do valor da PCP é denominado de Gradiente Transpulmonar (GTP).


1º passo: observe qual valor PCP

Se for menor que 15 mmHg, não há aumento de pressões cardíacas esquerdas justificando quadro de dispnéia, uma vez que a pressão de enchimento cardíaco do lado esquerdo está normal.

Se esta for maior que 15 mmHg, deve haver alguma alteração em câmara esquerda (podendo ser valvopatia mitral, aórtica ou mesmo disfunção ventricular) justificando o aumento de pressões ventriculares esquerdas.

2º passo: veja qual o valor da PAPm – Avaliação de Hipertensão Pulmonar e diferenciar padrão pré e pós-capilar

Se for maior que 25 mmHg: está feito diagnóstico de hipertensão pulmonar. Em alguns locais você irá encontrar o termo TP – Tensão Pulmonar, como equivalente a PAP.

Uma vez feito esse diagnóstico é importante que você diferencie se a causa é primária do território de artéria pulmonar, se ela é apenas um reflexo de um aumento das pressões em câmaras esquerdas ( HP secundária a cardiopatia) ou se há acometimento misto.

Para isso, realize a medida do GTP. Valores menores de 12 de GTP em geral apontam para aumento de PAPm secundário ao aumento de capilar pulmonar, ou seja, a PAPm aumentada é só um reflexo do aumento de pressões esquerdas.

Valores maiores de 12 apontam para que exista causa de território pulmonar para HP, podendo estar ou não associada a causa cardíaca, a depender do valor da PCP.

Vamos a alguns exemplos:

CASO 1

Mulher 36 anos portadora de esquistossomose e em investigação de hipertensão pulmonar avaliada de maneira não invasiva por ecocardiograma:

PCP 12 mmHg
PAP 42 mmHg
GTP (PAPm – CP):  30 mmHg

Nessa paciente temos uma PCP normal com PAPm aumentada e um GTP aumentado.

Conclusão:
Hipertensão Pulmonar de padrão pré-capilar.

CASO 2

Homem de 25 anos com história de febre reumática com sopro diastólico em ruflar + estalido de abertura mitral.

PCP 25 mmHg
PAPm 34 mmHg
GTP ( PAPm – PCP): 9 mmHg

Nesse doente temos uma PCP aumentada (‘causa cardíaca para dispnéia’) e o aumento da PAPm deve-se apenas a transmissão do aumento da pressão em câmaras esquerdas, uma vez que o GTP é menor que 12 mmHg.

Conclusão:
Hipertensão Pulmonar de padrão pós-capilar.

CASO 3

Mulher de 34 anos com quadro de estenose mitral de longa data aguardando data para cirurgia.

PCP: 25 mmHg
PAPm: 42 mmHg
GTP (PAPm-PCP): 17 mmHg

Veja que há aumento de CP, demonstrando que há ‘causa cardíaca’ para dispneia, mas uma PAPm de 47 com GTP maior que 12. Nessa situação temos de ficar atentos a duas possibilidades – doença de circulação pulmonar - p.e. se essa paciente tiver feito um TEP com hipertensão pulmonar residual - e a possibilidade de remodelamento da vasculatura pulmonar secundária ao aumento crônico de suas pressões pela doença cardíaca. Portanto, meio que um componente misto de hipertensão pulmonar.

3º passo: Verifique qual a pressão diastólica final do ventrículo esquerdo (PD2 do VE) e compare-a com a CP.

Em situação normal, elas devem ser muito próximas uma da outra pois na fase diastólica final, o ventrículo deve encontrar-se totalmente preenchido e não deve haver gradiente pressórico entre o AE e VE no final da diástole.

Qualquer diferença entre ambas deve ser considerado um gradiente AE-VE, sugestivo, portanto de alguma diminuição de área valvar mitral compatível com quadro de estenose dessa válvula, que pode ser graduada em leve, moderada ou grave, quando < 5, entre 5-10 ou > 10 mmHg, respectivamente.

4º passo: Verifique a pressão sistólica do ventrículo esquerdo (PSVE) e a pressão sistólica e diastólica em aorta (PSAo e PDAo)

Nesse momento, veja se há formação de algum gradiente entre a PSVE e a PSAo. A presença de diferenças pressóricas irão apontar para presença de algum grau de estenose aórtica, de maneira semelhante com que exemplificamos no passo 3 em relação a valva mitral.

A comparação entre as diferenças PSAo e PDAo irá apontar para possibilidade de presença de quadro de insuficiência aórtica quando houver maior divergência. Para melhor avaliação da competência valvar aórtica se faz necessário a avaliação da curva pressórica aórtica e da aortografia, onde-se observa de maneira clara a presença ou não de jato regurgitante pela válvula.

De maneira geral – os gradientes pressóricos entre as câmaras auxiliam na quantificação das estenoses valvares enquanto que a curva pressórica e as ‘grafias’ (ventriculografia e aortografia) auxiliam para demonstrar a incompetência.

5º passo: observe o cálculo do débito cardíaco, fornecido em Litros/min e a Resistência Vascular Pulmonar, habitualmente fornecida em Woods.

Vamos aplicar agora o que foi falado em um caso mais completo:

CASO 4

Paciente sexo feminino 45 anos avaliação de insuficiência mitral com dúvida em relação a sua importância por discordância clínica x ecocardiográcica.

PCP: 25 mmHg
PAPm: 36 mmHg
GTP: 11 mmHg
VE: Sístole: 130 D1: 0 D2: 22 mmHg
Ao: Sístole: 120 D1 70 M (média): 87 mmHg

Paciente tem uma PCP alta de 25 mmHg. Portanto, primeira conclusão é que deve haver problemas em câmaras esquerdas, mas ainda não sabemos – pode ser valvopatia mitral, aórtica ou até mesmo disfunção ventricular de outras etiologias.

Avaliando a PAPm vemos que está aumentada, mas com GTP menor que 12, ou seja, esse aumento é apenas secundário aos valores pressóricos aumentados em câmaras esquerdas. Portanto, um quadro de Hipertensão Pulmonar Pós-Capilar.

Avaliando a PD2VE temos um valor de 22 em relação a CP de 25, ou seja, há um gradiente pressórico entre ambas as cavidades sugerindo uma grau leve de estenose mitral, muito dificilmente sendo responsável por tamanho aumento em CP.

Em seguida, observamos apenas discreto gradiente sistólico entre VE-AO (130-120) de 10 mmHg, apontando para apenas uma discreta estenose aórtica. Da mesma forma, não há divergência da PAo sistólica (120) e diastólica (70) e a aortografia não mostra refluxo da aorta para o VE, excluindo IAo como causa da lesão.

Finalizando o exame, é feita a ventriculografia que se observa abaixo ( veja a seta localizando a área de refluxo mitral ):










Observe o refluxo que ocorre pela valva mitral. Portanto, a insuficiência mitral importante é a razão para a sintomatologia do paciente.

Conclusão:

O cateterismo com aferição de pressões e gradientes intra-cavitários é um excelente método diagnóstico complementar. Contudo, sua correta interpretação irá depender de todo um conjunto de variáveis clínicas que incluem uma boa coleta de história, cuidadoso exame físico e, principalmente, bom senso!

Leitura sugerida:

Tarasoutchi F, Montera MW, Grinberg M, Barbosa MR, Piñeiro DJ, Sánchez CRM, Barbosa MM, Barbosa GV et al. Diretriz Brasileira de Valvopatias - SBC 2011 / I Diretriz Interamericana de Valvopatias - SIAC 2011. Arq Bras Cardiol 2011; 97(5 supl. 1): 1-67. Disponível aqui.

HOETTE, Susana; JARDIM, Carlos  and  SOUZA, Rogério de. Diagnóstico e tratamento da hipertensão pulmonar: uma atualização. J. bras. pneumol. [online]. 2010, vol.36, n.6 [cited  2016-01-28], pp. 795-811. Disponível aqui